Amapá
HISTÓRIAS DA VÓ NIKITA: Castelos em Macapá...
O destino e suas faces! Acreditamos em tantas coisas... Sonhamos em alcançar o que nos faça felizes, buscamos e nos empenhamos na caminhada. Nossa história vai se construindo nesta lida diária e, muitas vezes, nem percebemos que de coisas simples e, às vezes, corriqueiras, novos caminhos vão surgindo, uma história vai se iniciando e a gente vai conhecendo uma face nova do destino. Os sonhos podem ser grandes, maiores, porém, são os desígnios de Deus! Cabendo a nós, envolvidos em mil nuances diante destas portas que se abrem, com ou sem nossa vontade, caminhar firmes, aprendendo, transformando, construindo e sempre optando pelas boas coisas. |
"Palafita" - Foto de Nil Muniz |
Foi um simples evento que determinou a vinda de minha avó Ana para cá, dando continuidade à construção de sua família: os Ferreira-Castelo do bairro do Trem em Macapá, outrora, ribeirinhos lá nas bandas do Jacarezinho, tantas gerações seguidas e muitos anos atrás. São lembranças da Vó Nikita todos os acontecimentos aqui presentes. Rotineiros também na época de sua bisavó Ana e avó Tereza (essa é a culpada do apelido que minha avó nunca gostou e que vou retratando aqui). |
"Palafita" - Tela de Manuel Fernando Croskey |
Alexandre Paulo, seu pai (meu bisavô, que tive o prazer de conviver por um tempo) era um homem de singular descrição: branco, loiro, olhos claros e de uma beleza notável principalmente por seu caráter. Era trabalhador, de bons exemplos, gentil, parecendo ter sempre nos lábios um eterno sorriso. Tinha um irmão gêmeo, mas estes só conviveram até a adolescência. O destino mostrou uma de suas faces e levou Pedro Paulo. Homem de fé forte, isso lhe valeu sempre, principalmente nos momentos difíceis de sua vida. Sua vista perdeu-se para sempre quando estava em pleno vigor de seus quarenta e poucos anos, mal que também acometeria minha avó, e mostrou-se forte em seus momentos finais de vida, com a destruição em seu corpo por esse mal que chamamos de câncer. Assim era Alexandre, bonito por sua fé e gentileza. Seu casamento com Vó Marieta durou mais de cinquenta anos. Esta também tem em suas características fatos a descrever: morena, dessas caboclas interioranas com os cabelos compridos e aparência com traços indígenas. Mesmo em sua avançada velhice não teve cabelos brancos... e sem apelar para tinturas. Seu retrato não foge do que é típico nessas bandas do norte, onde as morenas não são altas, com cabelos negros, encaracolados ou lisos, e donas de uma brejeirice a ?mundiar? o caboclo. Fala-se tanto do boto, mas não é páreo aos encantamentos de uma bela amazônida com um olhar sedutor a lhe conquistar. Esse é o casal que vivia às margens do Jacarezinho, meus bisavós maternos, em um barracão muito simples e tão escondido naquelas curvas do rio. Testemunhas e personagens dessas histórias que estou a lhes contar. |
"Amazônia" - Tela de Cecília Queiroz |
Não quero mostrar um quadro enganoso, era muito difícil a vida naqueles tempos. Muito difícil mesmo!! Tudo era isolado e sem ajuda diária, valendo-se da força de vontade e providência divina para sobreviver. A malária não dava tréguas, o caboclo podia ser acometido várias vezes. Um local de leishmaniose, pesadelo e perigo circundante naquelas matas, outro mal muito temido. Morria-se de sarampo, de meningite, rubéola e febres desconhecidas, que jogavam o caboclo na rede e o prostravam de maneira sofrida ou irreversível. E ainda não falamos dos encontros com a combóia, escorpiões, arraias, os vampiros... A raiva é até hoje um mal sem cura. O ribeirinho preferia enfrentar o sucuriju com o terçado em mãos do que cair nas mãos do destino num triste episódio de ser picado por esses bichos. Hospitais e médicos eram muito distantes, só nas cidades, dia e meio de remada e de muito sol na cabeça. Uma vez por ano é que apontava por aquelas bandas algum batelão com padre, médico e, quem sabe, juiz. Época de batismos, casamentos e "consulta com o dotô". Pouco tempo de cidadania, grande período de ostracismo... |
"Barracão" - Desenho de Rogério Castelo |
Euclides da Cunha fincou pés também nesse mundão verde da Amazônia e conheceu um pouco da realidade desse povo à margem da história. Se viu no sertanejo um forte, pode testemunhar que o ribeirinho é um bravo.Nesse contexto que vivia Alexandre, esse ribeirinho bravo em lutar pelos seus. Foi seringueiro, "soldado da borracha", num tempo em que o mundo explodia na crueldade da guerra. A borracha tinha valor e, como ele, muitos homens entravam nas matas para colher o látex. Todo dia a rotina. Pegava seu facão e cedinho estava em busca das árvores. Riscava mais de cem, deixando a seiva cair no cadilho. No caminho inverso, ia recolhendo no balde o que tinha escorrido. Muito trabalho... Quando terminava soava a sapopema ao longe, avisando para os seus de sua vinda. Ana, uma de suas filhas (minha avó), corria a preparar-lhe o café com farinha e, junto com os irmãos, acendia o braseiro para a borracha. Do que era colhido formavam umas bolas e todo final de semana vendiam. Tantos dias como esse... Isso durou enquanto Alexandre tinha as vistas. O destino mostrou mais uma face difícil e tirou-lhe da condição de provedor da família, passando a ser cuidado por sua esposa Marieta e filhos. Seringueiros (respectivamente, ilustração do Pará Histórico e desenho de Percy Lau)
O que o sofrimento não destrói, fortalece, e de forças em Deus que Alexandre sobrevivia com sua família nas margens do Jacarezinho, rio no grandioso Estado do Pará. Fui testemunha de sua fé, todo dia fazia orações em vários momentos. Quando passou uns dias em casa, preparava-lhe um pequeno oratório e o conduzia até lá. Não o vi falhar ou faltar com o ânimo nisso.
Alexandre deu seu adeus no ano de 1984, muito debilitado, mas sempre contínuo na fé. Em sua história muitos fatos que sempre gostei de ouvir e me por a imaginar.
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"Sapopema" - Foto de biblioteca.ibge.gov.br
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Conta-se que certa vez em que estava sozinho no trapiche em frente ao barracão, lá no lendário Jacarezinho, ouviu um barulho no matagal próximo, estalos de pau quebrando. Aguçou os ouvidos e percebeu vir em sua direção passos rápidos e pesados. As tábuas do trapiche rangeram ante o peso das passadas apressadas, seguidas de uma respiração profunda e muito sonora a cercar-lhe. Seja o que fosse não respodia às perguntas feitas e ouvia-se apenas aquela respiração cansada e puxada rodeando-lhe sem dizer-lhe palavra. Seu corpo arrepiou-se com o frio sentido, indícios do medo, mas sua fé foi sua força e com atitude de oração afastou aquilo dali.
Todos daquele barracão cresceram como homens e mulheres fortes. As circunstâncias fizeram de todos caboclos "virados". Todos os ofícios eram desempenhados. Alexandre formou uma família de trabalhadores e não faltou a manutenção em seu lar quando suas vistas se foram. Seus filhos eram Nilzinho (Sebastião), Lóla (Maria Vitória), Ana, Mundinha (Raimunda), Raimundo (Badat) e Lourival.
Os ofícios da vida ribeirinha foram aprendidos. Só não lhes foi dada a oportunidade de estudo quando crianças e adolescentes. Nos fenômenos naturais quanto desconhecimento... Foi numa situação engraçada que viram o eclipse lunar pela pimeira vez. Quando a lua começou a ficar vermelha, Alexandre chamou a filharada e começaram a rezar no trapiche... até que tudo voltou ao normal!! Só depois que explicaram-lhe o fenômeno. E o eclipse solar... Ah! esse foi uma verdadeira lenda. Os seringueiros na mata viram aquele dia claro começar a fechar estranhamente. Chuva? No regresso para casa anoiteceu repentinamente. As galinhas e jacamins estavam todas recolhidas ao puleiro e árvores altas... em plena manhã, com aquela noite misteriosa. As sapopemas ecoaram ao longe, eram os caboclos perdidos na mata, sem poronga e sem visão de nada. Da casa batiam as panelas e paus para tentar orientar o caminho. Tão repentina quanto começou, foi o fim daquela breve noite. As aves desceram ao terreiro e tudo voltou ao normal... fora o susto.
Voltemos nossa atenção para Ana. Daquela geração é a última e dela passo a narrar daqui para frente.....
continua .....
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